VINAGRE COMO ALIMENTO

A utilização do vinagre do ponto de vista médico

O vinho é, certamente, uma bebida muito antiga. Por isso, naturalmente, também o vinagre será de conhecimento e utilização muito antigos. . Introdução Refere-se, de início, a existência de dificuldades que nesta área enredam um discurso claro. De fato, a definição de vinagre, com vista à sua utilização numa dada comunidade, tem caráter legal. E, como geralmente tem acontecido depois do Iluminismo, também o que respeita à Alimentação/Nutrição é muitas vezes condicionado diretamente pelos governos dos estados sem a participação responsável de instituições autônomas competentes que garantam a Polis a justeza das leis. Então, nesta área, o atributo científico é, muitas vezes, justificativo do alegado caráter regulatório da ciência, pelo que a isenção dos respectivos pareceres solicitados had hoc nem sempre se encontra desligada de influências espúrias. Definição de vinagre O vinho é, certamente, uma bebida muito antiga. Por isso, naturalmente, também o vinagre será de conhecimento e utilização muito antigos. Dele achamos já elaboradas notícias nos Tratados Hipocráticos: o vinagre é refrescante… É mais adstringente que laxante… Não é nutritivo, mas acre… E, sentenciosamente, que os pratos e os molhos preparados com vinagre são bons. Sendo o vinagre o mais comum dos condimentos ácidos, compreende-se que o ácido acético tenha sido o primeiro ácido bem conhecido. O vinagre ou vinho acre seria, então, o produto obtido a partir do vinho por processos implicantes da estrutura reprodutiva que se chama Mycodema ou mãe do vinagre e que hoje se sabe ser uma cultura de bactérias chamadas acéticas. Tendo aparecido como produto doméstico, o vinagre adquiriu depois uma grande importância industrial, não só alimentar, mas também como matéria-prima para a preparação do ácido acético. De um modo geral, chama-se vinagre ao produto obtido por fermentação acética de líquidos provenientes da fermentação alcoólica de substâncias de origem agrícola, quer sejam vinho ou outras. E consideram-se diversos tipos de vinagre: vinagre de vinho, jovem; vinagre de vinho, envelhecido; vinagre de sidra; vinagre de (outros) frutos; vinagre de malte; vinagre de álcool. No nosso País, a importância dos seus aspectos legais parece ser tardia, como tardiamente passaram a ser considerados diversos vinagres e não diversos tipos de vinagre. A globalidade do que até então estava disperso só foi considerada pelo Decreto-Lei n.º 248/82, de 24 de Janeiro, para introduzir a possibilidade de comercializar produtos semelhantes ao clássico vinagre obtidos de outros frutos que não as uvas. Uma portaria mais recente (55/88, de 27 de Janeiro) torna menos discriminada as exigências da composição dos produtos abrangidos com o mesmo nome e autoriza a produção de outros vinagres que não os de frutos, embora apenas para exportação e devidamente oficializada por autorização prévia à sua fabricação. Propriedades do vinagre Segundo a Lei Portuguesa (Portaria 55/88, de 27 de Janeiro), consideram-se as seguintes propriedades organolépticas: aspecto (límpido, embora possa admitir-se algum depósito ou turvação); cor, aroma e sabor (variáveis com a natureza da matéria-prima, dos ingredientes facultativos autorizados, que devem ser expressos no rótulo, e das substâncias adquiridas durante o armazenamento a partir do continente e/ou por transformação dos componentes primitivos). Com exceção das características que fazem do vinagre um produto agradável e da discriminação das concentrações máximas de produtos destinados à sua conservação, pouco mais é exigido para a sua comercialização do que o teor de ácido acético. O apontamento da concentração dos ácidos aminados permite-nos reconhecer que o vinagre de vinho é habitualmente mais rico do que o de sidra ou o de cana, mas não nos autoriza a fazer qualquer outra generalização. O assunto da composição e da estrutura do vinagre deve ser expressamente considerado em aberto. Na verdade, atualmente, conhecida que seja a quantidade deste produto utilizada na alimentação, verifica-se que, para além da participação nas suas características organolépticas, todos os constituintes naturais do vinagre que não sejam o ácido acético parecem não oferecer outro motivo de interesse que não seja o que possa decorrer de obscuros domínios da homeopatia. • O uso culinário do vinagre O vinagre tem sido tradicionalmente usado em Culinária como conservante e como condimento. As razões destes seus usos são bem conhecidas. • O uso terapêutico do vinagre As referências históricas da utilização terapêutica do vinagre são muito variadas e a primeira observação que penso dever ser feita diz respeito à dispersão dessas indicações. Desse variado conjunto, o que podemos concluir, hoje? Reconheço desde já que há uma lógica para explicar (com o seu discurso) e uma lógica para descobrir (com o seu empenhamento). E não deixo de apelar para ambas. Para explicar as utilizações historicamente registradas, devemos valorizar não só a conclusão a que chegamos anteriormente, de que o vinagre é rico em ácido acético, mas também, obviamente, as características organolépticas do produto, para as quais contribuem significativamente as do próprio ácido acético em solução. São duas as principais vias de utilização do vinagre, uma vez que as fumigações (desinfetante) raras vezes foram praticadas e as enteróclises também nunca tiveram muito uso: – a tegumentar (dérmica e mucosa) e a digestiva. Haverá, então, motivações comuns para ambas e motivações diferentes para cada uma. As motivações comuns hão-de procurar-se nas características físicas do ácido acético: – a sua acidez benigna, a sua solubilidade acentuada, o seu poder de dissolução muito grande, a sua volatilidade intensa. Estas propriedades condicionam o sabor (o próprio do vinagre e o das substâncias que ele dissolve), a adstringência e o aroma. Reconhecida a benignidade da sua acidez e a sua capacidade para dissolver diversas substâncias, justificada fica a sua utilização como veículo de princípios ativos. As propriedades revulsivas e antipruriginosas explicam-se pelas referidas características. As propriedades anti-sépticas explicam-se pelo efeito de desnaturação proteica, também de intensidade relativamente suave nas concentrações utilizadas, e de acumulação do ácido acético no interior dos microrganismos, cuja membrana lhe é facilmente permeável dada as suas características e pequena molécula. A principal utilização médica do vinagre é a dietética. Explica-se pelo caráter eupéptico, que resulta de tudo quanto foi apontado (a acidez ligeira, os sabores e os aromas próprios ou de adição, culturalmente modulados); a sua contribuição para, com certa comida, obter uma rápida saciedade pode ser também utilizada, e resultará do caráter adstringente conferido, em particular, pelo ácido acético e pelos polifenóis. Lembra-se que, na mira da cura das doenças, as intenções da arte médica podem implicar riscos grandes para a saúde. Nesta perspectiva, devemos reconhecer a existência de efeitos não vantajosos ou mesmo altamente lesivos. Devemos denunciá-los, para evitar as conseqüências do uso inadequado. Refiro-me, por exemplo, à aplicação do vinagre no tratamento da obesidade. É da tradição popular que haja quem emagreça bebendo vinagre. Por isso deve saber-se que, mesmo nas concentrações em que existe no vinagre, em grandes quantidades o ácido acético é suficientemente agressivo para produzir colites ulcerosas, como pode ser verificado em animais de experiência. Essa agressividade é também utilizada quando se usa soluções de ácido acético com a intenção de diagnóstico, para visualizar desnaturações de nucleoproteídos e de outros proteídos, em células já fragilizadas por lesões prévias, como acontece no colo do útero, no pênis e em outros órgãos, nas lesões produzidas pelos vírus dos papilomas humanos. A anemia grave produzida pela ingestão de ácido acético, que se encontra descrita desde há muito, resultará possivelmente de múltiplos fatores lesivos do aparelho digestivo. Embora possa haver vantagens na utilização do ácido acético quando sejam visadas outras finalidades, concluir-se-á, desta discussão, que o uso dietético do vinagre, como eupéptico, é a sua indicação major. E esta deverá ser equilibradamente valorizada quando se pretenda quer a recuperação nas doenças crônicas quer a evolução favorável das convalescenças, ou a recuperação do gosto e do olfato. O caráter cultural da aplicação impõe, ainda, a consideração dos diversos tipos de vinagre, tanto na culinária como na conservação de alimentos a utilizar ulteriormente, de origem animal ou vegetal. Consideram-se aqui também os escabeches e os pickles. Depois da lógica da explicação agora a lógica da descoberta. Esta deixa à nossa imaginação a consideração dos efeitos biológicos dos componentes (tradicionais ou não) do vinagre, para maior aprofundamento do seu estudo, e a consideração dos efeitos metabólicos do ácido acético ainda hoje não claramente sistematizados. Dada a complexidade do domínio em que o metabolismo do acetato decorre, penso poder referir como áreas de estudo a aprofundar: primeiro, a contribuição da sua energia metabólica (armazenada na forma de ATP e análogos), quando da ministração aguda, cujo estudo se encontra iniciado, embora por outros motivos; e, segundo, os efeitos bioquímicos da acetilação, para além de outros. Concluirei lembrando, da sabedoria popular, não ser o vinagre apropriado para caçar moscas. Bem sabemos que para o Cristianismo o vinagre é o símbolo da Paixão de Cristo, que para a Alquimia o vinagre de antimônio simboliza a consciência e que para os orientais a ânfora do vinagre é um símbolo de vida. E é assim que o nosso imaginário aumenta a nossa responsabilidade, apesar de termos já bem por certo que nunca devemos estragar o vinho, mesmo quando azeda".

Nota: Texto baseado na palestra realizada na Escola Superior de Biotecnologia, da Universidade Católica Portuguesa, nas Caldas da Rainha, em 20 de Outubro de 2003, inserida no Seminário «Vinagre e Saúde», promovido pela LASVIN – Liga dos Amigos da Saúde, Vinho e Nutrição. Professor Doutor Cândido Alves Hipólito-Reis Professor Jubilado da Fac. Medicina da Univ. Porto e membro do Conselho Científico-Cultural da LASVIN

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